Artigo #3 | Padre Crespo

“É fundamental a reconstrução completa do Bairro da Liberdade.” 

Nascido em Leiria em 1940, o Cónego Francisco Crespo foi ordenado sacerdote em 1965 e em 1970 tornou-se Pároco de Campolide e da Bela-Flor. Chegou à Paróquia de São Vicente de Paulo em Março de 1977, para desenvolver o projecto de solidariedade que dirige no Bairro da Serafina. Em Abril deste ano, sob proposta do presidente da JFC, André Couto, a Assembleia de Freguesia aprovou por unanimidade a atribuição de uma Medalha de Mérito ao eclesiástico, honra que gentilmente declinaria, tal como fez com as anteriores condecorações oficiais. O Cónego Crespo benzeu o campo de jogos do Bairro da Liberdade no acto de inaguração, a 22 de Setembro.

Como chegou à Paróquia de São Vicente de Paulo?
Estou cá desde 1977. Já existia, em raíz, o que está aqui hoje, mas o meu antecessor, o pároco José Gallea, foi o primeiro a vir para cá. Embora fosse capelão das Irmãs do Amor de Deus – que já cá existiam com a obra de Educação Popular – era o pároco de Campolide e aca- bou também por ser o primeiro desta Paróquia. Naquela altura – 1958, 1960, 1961 – fez o que pôde para que a igreja fosse uma resposta às necessidades da população. Criou a sopa dos pobres, o apoio aos jovens, com o campo de futebol, acções culturais, teatro, cinema, e também às crianças, sobretudo as da escola primária. Não acabou a obra que imaginara – construir uma escola de artes e ofícios para os jovens – porque entretanto teve de partir. A capela permaneceu, até há pouco tempo, uma espécie de pré-fabricado, mas naquela altura essa obra um pouco rústica respondia às ne- cessidades da população.
Passaram vários párocos por cá. O último esteve seis meses, não aguentou mais. Era o pós-25 de Abril, havia forças de extrema- -esquerda e extrema-direita nos bairros mais degradados. Os cristãos vinham muitas vezes à missa a fugir, com receio, e houve padres maltratados, ninguém queria vir para cá.

Mas já tinha estado em Campolide...
Sim, quatro anos em Sete Moínhos, hoje Quinta da Bela Flor. Também ali não havia nada e fui eu que iniciei obra, com uma capela, uma es- cola... por isso, ofereci-me para vir. Os meus superiores não estavam de acordo, mas lá cederam. Fui entrando por volta de 1976/77 e encontrei tudo abandonado. Praticamente só havia meia dúzia de crianças no Atelier de Tempos Livres (ATL) e pessoas que vinham à igreja, mas sem qualquer actividade.

Por onde decidiu recomeçar a obra?
A primeira coisa necessária era que a igreja fosse um polo de atracção, que as pessoas vis- sem que a Igreja não estava aqui para fazer mal a ninguém, bem pelo contrário, acolhia todos, praticantes ou não praticantes, não importan- do a idade ou de que partido fossem. A Igreja é para servir e, se assim é, tem que demonstrar que tem algo para oferecer. Eu tinha a minha boa vontade.
Como havia muita necessidade de muitas respostas tive de reflectir por onde começar e decidi que o que mais fazia falta era dar resposta aos idosos, porque os via sentados nas tabernas, debaixo dos arcos, sem fazerem nada. Criei um pré-fabricado com o Centro de Dia, com actividades culturais e recreativas, foi um dos primeiros que existiu em Lisboa e, se calhar, no país. E apoio domiciliário, pois havia idosos sós e abandonados que necessitavam de apoio na alimentação, na higiene...

“Sem a reconstrução completa do Bairro da Liberdade, sem habitação digna, não podemos às pessoas. A habitação degradada traz os outros problemas, degrada-se também a pessoa e a sociedade.”

Com quantos utentes abriu o Centro de Dia e quais foram os passos seguintes?
Começámos com cerca de 60 pessoas, além do apoio domiciliário. Havia ainda uma parte daquelas construções que o padre Gallea tinha deixado, havia o Jardim de Infância, mas era necessário dar mais respostas. Os pais precisam de trabalhar e as crianças precisam de ser acolhidas. Ainda nas mesmas instalações, alargámos então a capacidade de resposta a mais 100 crianças. Perante a falta de espaço para as crianças do ATL, construímos então um Jardim de Infân- cia de raíz, as crianças passaram para aqui e o ATL continuou nas outras instalações. Tendo resposta para as crianças e os idosos, faltavam os adolescentes e os jovens, para os quais se criou uma pequena sala com actividades.

Mas ainda se tratava do pré-fabricado?
Sim, e este começou a rebentar pelas costuras. Uma irmã do Amor de Deus que era enfermeira, pedia-me que fizesse quartos para os doentes. Então meditei muito, procurei apoios, e nasceu o edifício destinado sobretudo a responder aos idosos dependentes, mas também os deficien- tes, que já acompanhavamos, sobretudo aque- les sem família e ao abandono, e com creche e berçário para os bebés, pois apenas o Jardim de Infância (JI) não era suficiente.
Mas o ATL ainda se encontrava no espaço antigo e degradado. Faltavam-me ainda um ginásio, um refeitório com condições, salas, um auditório... necessitávamos de demolir e reconstruir de raíz.
Já dávamos resposta às várias faixas etárias, chegara o momento de completar o conjun- to edificado com uma igreja, que nasceu em 1996. Mas ainda só tinha resposta para 40 idosos dependentes. Com tanta gente a vir aqui pedir, como já tínhamos construído o Centro de Dia prevendo a possibilidade de um segundo piso, avançámos para termos, pelo menos, mais 40 ou 50 camas. Assim, concluímos pra- ticamente as construcções, mas a tudo isto foi necessário continuar a dar vida, qualidade, preencher com técnicos.
Hoje, temos resposta para 70 crianças da creche, 140 do JI, 120 do ATL, mais 60 que vêm só da parte da tarde e nas férias. Além de 120 adolescentes e jovens, 70 idosos que frequen- tam o Centro de Dia e 80 no apoio domiciliário, 30 deficientes e 100 idosos dependentes. E como, com a ajuda de Deus, tenho conseguido pagar todas as dívidas – procurando apoios, com apoio estatal e poupanças e boa gestão –, com certeza conseguirei ainda fazer mais alguma coisa.
Quantas pessoas mantêm em funciona- mento um Centro com tanto movimento? Cerca de 160 funcionários, de médicos a fi- siatras, fisioterapeutas, enfermeiros, técni- cos de serviço social, psicólogos, terapeutas ocupacionais, educadoras sociais, anima- dores culturais e ajudantes. Tenho tido bons colaboradores, alguns formados aqui desde bebés e que vieram cá pedir trabalho uma vez concluído o curso. Há pessoas que vêm pedir comida, e damos-lhes também a possibilidade de trabalhar. Tenho a alegria ter aqui a traba- lhar pessoas de outras religiões. Acolhemos todos, porque a Igreja de Jesus Cristo é para todos, é Católica e Universal. O meu trabalho pastoral como padre não é contentar-me com aqueles que já vêm à igreja, mas sim estar ao serviço de todos, crentes ou não.

“Quando vim para cá, disse que só construiria uma igreja após dar resposta ao Cristo Vivo, na pessoa do meu irmão necessitado.”

A sua obra preencheu um vazio num bairro negligenciado pelos poderes públicos? Quando morrer, vou morrer com esse espi- nho cravado. Procurei durante estes anos todos envolver a comunidade, que é difícil de mobilizar, mas também a autarquia, o Estado, os governos... a primeira coisa fundamental é a reconstrução completa da Habitação. Quando houve tantos subsídios para a erra- dicação de barracas, fiz tudo o possível para que o bairro fosse incluído. Disse aos vários presidentes da Câmara – todos fizeram pro- messa mas nada se concretizou – que isto é uma entrada principal da cidade de Lisboa e faz vergonha a quem entra aqui, debaixo do Aqueduto das Águas Livres, ver este tipo de miséria. A construcção do Eixo Norte-Sul causou maior degradação e deixou aquelas casas abarracadas a cair pela ribanceira.
Eu fiz a minha parte. Tenho outras activi- dades ao nível da diocese, mas estou prati- camente aqui os sete dias da semana. Sou o primeiro a chegar e praticamente o último a sair. Quis que aqui as pessoas se sentissem promovidas e com condições para viver, ainda que tenham condições menos boas em casa. Varia um pouco, mas servimos mais de 1200 refeições por dia, já nem conto quantas sirvo a mais. No Natal abro um refeitório para as pessoas carenciadas e numa semana sirvo quase mil refeições. É sinal de que há muita gente com fome.

“A Paróquia, para não dizer toda a Freguesia de Campolide,  tem muita gente envelhecida, a viver na solidão, pobre e carenciada.”

in Notícias de Campolide, Dezembro, 2012

1 comentário:

  1. “Sem a reconstrução completa do Bairro da Liberdade, sem habitação digna, não podemos às pessoas. (...).”
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